Com controle do Judiciário, perseguições aos adversários, crescimento econômico e ortodoxia fiscal, Evo, beneficiado por migrações internas, tem agora maioria até nas regiões que lhe faziam oposição
RAPHAEL GOMIDE, DE SANTA CRUZ DE LA SIERRA
Às 8 horas do domingo, dia 5, a uma semana das eleições para presidente da Bolívia, 200 pessoas se reuniram na esquina das ruas Ballivián e Oruro, centro de Santa Cruz de la Sierra, coração econômico do país, à espera do candidato favorito à reeleição, Evo Morales. “Somos todos Evo!!!”, diziam as camisas e faixas azuis, cor de seu partido, o Movimento ao Socialismo (Mas). Apenas um policial fazia o controle do tráfego. Não havia detectores de metais ou cavaletes para a segurança do presidente da Bolívia e da federação nacional de cocaleros, à frente do país há nove anos. A associação carnavalesca da Rua Ballivián estava pronta para manifestar o recente apoio a Evo em Santa Cruz, onde ele sempre enfrentou forte rejeição política. Um oficial da segurança, com óculos escuros e uma pistola apontando no coldre sob a camisa social, chegou para inspecionar o lugar. Duas bandas se revezavam entre a batucada e um estridente naipe de metais tocando música boliviana. Um homem com uma fantasia de espuma de Evo dançava e entretinha o público, sob o sol de 30 graus. Às 9h35, Evo saltou do carro e caminhou em direção ao grupo, já com 400 pessoas. Foi recebido com festa, assistiu à apresentação de dança e deu a uma menina um par de óculos escuros com a inscrição nas lentes: “Evo”. Ele dançou, sorriu e não fez discurso, apenas agradeceu. No fim, entrou de roupa na “tradicional ducha” de água fria da Rua Ballivián, um chuveiro instalado na rua, sob gritos dos presentes.
Dali, seguiu para outro comício com cerca de 1.000 pessoas no bairro dos imigrantes de Oruro, em Santa Cruz. Oruro, uma área indígena e pobre do país, é o departamento natal e reduto eleitoral de Evo, onde obteve 80% dos votos em 2009. Devido ao grande crescimento econômico, Santa Cruz tem recebido milhares de migrantes por ano. O censo de 2012 aponta um crescimento de 37% da população na região entre 2001 e 2012. Eles estão entre os responsáveis por equilibrar as intenções de voto em favor de Evo naquela parte do país, um dos bastiões da oposição ao governo, a ponto de pleitear autonomia em 2008. Ao lado de Evo estava a jovem deputada Jennifer Echeverría, antes uma das vozes mais críticas a Evo – chegou a chamá-lo de “assassino”. Ela se uniu a ele na semana passada. Brindou a união com champanhe. “Foi a última a mudar”, diz a economista Yenny Soliz, mulher de um dirigente do Mas. “Alguns políticos se dão conta das mudanças que acontecem na Bolívia e se juntam. Outros cuidarão de seus interesses. Se o governo não os apoia, não se mantêm na política.”
A deputada Jennifer, que não atendeu aos pedidos de entrevista a ÉPOCA, é um símbolo da encruzilhada da oposição boliviana diante do poder e da popularidade de Evo no país mais pobre da América do Sul. Por causa dos avanços econômicos da Bolívia, muitos oposicionistas se viram forçados a aderir ao governo. Quem não seguiu o adesismo, minguou no cenário político, silenciado e sufocado pelo governo com perseguições políticas e judiciais. A oposição remanescente, dividida, não consegue encontrar um caminho. Sem um nome forte e capaz de abalar a imagem de Evo, os adversários têm dificuldades em conquistar a população no momento em que o país, liderado por Evo, passa por um período de prosperidade econômica.
Evo soube içar as velas certas para navegar nos ventos econômicos que empurram a Bolívia. Favorecido pela alta no preço internacional do gás e dos minérios, principais produtos de exportação bolivianos, as receitas do país se multiplicaram por cinco desde 2005. A economia cresceu em média 4,8% ao ano, entre 2007 e 2012. No ano passado, a taxa foi de 6,5%, a mais alta taxa em 38 anos. O dinheiro circula e há mais empregos (leia o quadro no final da página). Até o Fundo Monetário Internacional (FMI), antes contumaz crítico da Bolívia, tem elogiado o manejo da economia. “Já há vários anos, o desempenho macroeconômico da Bolívia tem sido muito bom”, afirmou a economista do FMI Ana Corbacho, chefe da missão que, em fevereiro, analisou as contas bolivianas. Segundo a previsão do FMI, a Bolívia crescerá, neste ano, 5,2%, a mais alta taxa da América Latina.
Com dinheiro em caixa, Evo promoveu programas de distribuição de renda para famílias pobres, como bônus para educação, parturientes e terceira idade. Instituiu o 14o salário para empregados do mercado formal, que contempla apenas 30% da força de trabalho. Apesar da arrecadação crescente, Evo não se atirou à gastança a que muitos de seus vizinhos se entregaram. Adotou a ortodoxia fiscal, sem arroubos populistas e com controle das contas públicas. Seu governo reduziu a dívida pública, que caiu de 39% do PIB, em 2009, para 32,5%, no ano passado. Em 2013, a Bolívia acumulou um recorde histórico de reservas em moeda internacional e manteve superavits, tanto nas contas do governo (1,4% do PIB), quanto nas estatais (0,5%).
Esse sucesso é um paradoxo do governo Evo. Depois que assumiu o poder, ele adotou um agressivo programa de nacionalização, que afetou os setores de gás e petróleo, telecomunicações, transportes e mineração. Em 2006, nacionalizou a exploração de gás e atingiu a Petrobras. Também fixou regras rígidas para a produção agrícola. Proibiu a exportação de produtos, como soja, e estabeleceu uma cota mínima para outros, como milho e arroz, vendidos a “preço justo” internamente, em nome da “segurança alimentar” nacional. Apesar das estatizações e dos rígidos controles, o país passou a atrair mais investidores. O investimento estrangeiro direto na Bolívia saltou de US$ 102 bilhões, em 2009, para US$ 678 bilhões, no ano passado. Nos últimos quatro anos, a entrada do investimento estrangeiro ficou, na média, em 3,5% do PIB boliviano.
Com a economia em alta, como apontavam as pesquisas, Evo foi reeleito no domingo (12). Mesmo antes da divulgação oficial do resultado, o presidente comemorou a vitória e a oposição reconheceu a derrota. A pesquisa de boca de urna indicou 60% dos votos para Evo. O segundo colocado foi o industrial Samuel Doria Medina, da Unidade Democrática.
Em condições normais, já seria difícil para a oposição fazer frente a Evo. Numa Bolívia em que a máquina do governo controla o Judiciário, a Justiça Eleitoral, o Congresso, a Polícia Nacional e parte da imprensa, a vitória da oposição é uma missão impossível. Evo tem apoio de sete dos nove departamentos bolivianos e conta com dois terços do Legislativo. Seus adversários políticos são perseguidos e alvo de processos judiciais duvidosos. O ex-presidente da empresa de estradas da Bolívia José Maria Bakovic foi um dos alvos do linchamento moral que o governo do Mas impõe aos rivais. Bakovic respondia a 76 ações em sete dos nove departamentos bolivianos. Foi preso duas vezes sem provas. Em 2013, doente, aos 74 anos, morreu, após um infarto, numa viagem para uma audiência em La Paz – uma junta médica recomendara repouso.
De quatro governadores de oposição, só restou um no cargo, Rubén Costas, de Santa Cruz. Ele responde a dezenas de processos. O governador de Pando, Leopoldo Fernández, foi detido em 2008, levado a La Paz sem processo legal e está preso há seis anos, sem sentença. Ernesto Suárez, do Beni, outro reduto oposicionista, renunciou em 2012, por pressão de Evo, após ser acusado de irregularidades pelo Ministério da Luta contra a Corrupção. Agora, foi candidato a vice de Samuel Doria Medina e está impedido de sair do país. Mario Cossío, de Tarija, foi suspenso do cargo por acusações de corrupção. Fugiu para o Paraguai, onde ganhou asilo político.
Essas ações só são possíveis porque Evo tem as rédeas do Judiciário. Ele nomeou a maior parte dos juízes e promotores no país. Com a nova Constituição de 2009, o Judiciário perdeu o status de poder autônomo. Hoje é um órgão sujeito às pressões do Executivo. Os juízes dos Tribunais Superiores, da Corte Suprema e da Justiça Eleitoral foram substituídos. A Corte Suprema costuma ratificar as decisões de Evo. Uma delas teve impacto direto nas eleições de domingo. A Corte autorizou que ele disputasse o terceiro mandato consecutivo, embora a Constituição da Bolívia só permita uma reeleição. Evo se elegeu pela primeira vez em 2005 e foi reeleito em 2009. No mesmo ano, com apoio total do Congresso, conseguiu refazer a Constituição e “refundar” a Bolívia como “Estado Plurinacional da Bolívia”. Pela interpretação dele, só valem os mandatos a partir da refundação do país. Eles excluem a primeira vitória eleitoral de Evo. “Foi uma violação à Constituição. Mas como fazemos respeitar a lei, se manipulam a Justiça? Evo é o árbitro, o dono do campo e da bola. É ele que cria as regras”, afirma Samuel Ruiz, presidente da União da Juventude Cruzenha, uma entidade que reúne jovens oposicionistas de Santa Cruz de la Sierra e da região. “As eleições não têm um árbitro neutro, porque o Tribunal Supremo Eleitoral responde ao presidente. O governo inunda o país com propaganda favorável a Evo, enquanto a propaganda eleitoral de oposição ficou restrita aos últimos 27 dias antes do pleito”, disse a ÉPOCA o candidato Samuel Doria Medina, segundo colocado nas pesquisas.
Nesse cenário, Evo não quer saber de debates políticos ou entrevistas. Instado por Medina, disse em julho: “Que vá debater com sua avó! E com a gente que escapou e está fora da Bolívia”. “A institucionalidade não funciona. Ele tem controle de absolutamente tudo”, afirma a jornalista Maggy Talavera, diretora do Semanario Uno. “Todas as regras estão a favor do presidente, que persegue os dissidentes. Não querem oposição nenhuma, querem tudo, porque acham que, se tiverem 95%, os outros 5% incomodarão.” Segundo Talavera, Evo também demonstra seu “caráter autoritário” na relação com a imprensa. Ameaça as redes de TV e rádio de lhes retirar a concessão. Jornais e outros meios foram comprados por empresários ligados ao governo, caso do diário La Razón e de duas redes de TV. Outros meios menores são atraídos por verbas publicitárias.
Autor de três livros críticos ao governo, o jornalista político Carlos Valverde diz que perdeu o contrato com uma TV como retaliação por sua atuação profissional. “Me tiraram de dois empregos por causa dos livros e do filme em que fiz denúncias de fraude eleitoral. Quando fui renovar meu contrato, me negaram. Depois, passei dois anos numa outra TV, até que começaram a pressionar a emissora, e decidi sair. Minha produtora de TV sofreu corte de publicidade e não recebe verba pública. Eles me deixam no ar para dizer que há liberdade de imprensa”, diz Valverde. “Evo adora o poder. É mussoliniano.”
Em seus nove anos no poder, Evo acirrou uma rivalidade histórica dentro da Bolívia. De um lado, está a região ocidental, dos grandes vales e dos Andes, onde estão as cidades de La Paz e Cochabamba. Os habitantes, conhecidos como “collas”, são majoritariamente de origem indígena. Na banda oriental, estão os moradores da região conhecida como Meia Lua. Ela inclui Santa Cruz, Beni e Pando. São chamadas de “cambas”, de tez mais branca, mestiços e ricos. Motor econômico da Bolívia, Santa Cruz liderou, em 2007 e 2008, o movimento que defendia a autonomia da Meia Lua – com mais poderes e atribuições. Até hoje, os ressentimentos continuam. Até há pouco tempo, Evo não visitava Santa Cruz, onde dizia não ser bem-vindo. Na semana passada, o Mas anunciou que encerraria a campanha presidencial na estátua do Cristo na cidade, símbolo do movimento autonomista, local onde houve a Assembleia do Milhão, evento em que milhares se reuniram para defender a autonomia. Antes que a prefeitura negasse autorização para o uso político do símbolo local, foi convocada uma vigília, que terminou em brigas com um grupo pró-Mas. Governistas quebraram os vidros do carro de Ruiz, o líder estudantil. “Vivo em risco”, disse ele a ÉPOCA. “Já disse publicamente que, se algo me acontecer, se for apunhalado, meu carro queimado, os responsáveis são o Mas e o presidente Evo Morales.” A intimidação e o temor de retaliação política e econômica são visíveis em Santa Cruz. Quatro grandes empresários da Bolívia ouvidos por ÉPOCA pediram que seu nome não fosse citado, temendo represálias.
Apesar das tensões e desconfianças, nos últimos anos melhorou a relação entre a classe produtora e o governo nacional. Os agropecuaristas de Santa Cruz buscaram conversar. Seu interlocutor é o vice de Evo, Álvaro García Linera, considerado o “cérebro político” do governo. Depois de alegar, por anos, que não era convidado a ir à tradicional feira agropecuária da região, Evo marcou presença neste ano. Com papel fundamental de brasileiros, Santa Cruz é responsável por 80% da produção boliviana – a agropecuária representa 12% do PIB e metade da população ocupada. “Não tinha diálogo, Evo não pisava em Santa Cruz. Havia um discurso agressivo deles e uma resposta agressiva daqui”, afirma Julio Roda, presidente da Confederação Agropecuária Nacional e da Câmara Agropecuária do Oriente da Bolívia. “Há quatro anos, começamos a fazer pontes e conseguimos acordar vários pontos. Avançamos muito. Quem disser que não ganhou dinheiro está mentindo.”
Os empresários ainda têm muito que reclamar. A lentidão, o excesso de burocracia do governo, a insegurança jurídica atrapalham os negócios. Sem falar nos problemas estruturais. A economia não é diversificada. Os recursos do país estão concentrados no setor de gás. Em 2010, Evo viveu um momento de tensão por causa dessa dependência. Houve queda na produção de petróleo e gás, ao mesmo tempo que entraram em circulação 129 mil novos veículos no país e o consumo aumentou. Quando o governo anunciou o corte à subvenção do preço da gasolina, o diesel aumentou em 82%, e a gasolina, em 78%. Houve o “gasolinazo”, uma forte reação popular, e Evo teve de ceder. Os subsídios estatais aumentaram para que a população pudesse comprar gasolina barata. Até hoje, a revolta é lembrada em pichações nos muros de Santa Cruz – “Evo=Gasolinazo” – e usada como arma de propaganda eleitoral contra o Mas.
Mesmo diante da oposição persistente de alguns bolsões a Evo na Meia Lua, é inegável que a Bolívia vem crescendo de forma consistente. A boa fase da economia animou a maioria dos bolivianos a votar novamente em Evo, mesmo em Santa Cruz. Até quem considera tendenciosas as pesquisas eleitorais em favor dele não duvidava, antes da votação, que conseguiria mais um mandato de cinco anos. A questão agora é quanto tempo o imperador Evo ficará no poder.
FONTE: EPOCA.COM.BR
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